História da Casa da Moeda
A Casa da Moeda de Lisboa é provavelmente o estabelecimento fabril mais antigo do Estado português, estimando-se que a sua laboração contínua, em local fixo da cidade, remonte pelo menos ao final do século XIII. Tem, como é natural, uma história profundamente associada à produção industrial, mas que se cruza com um património cultural, artístico e social hoje reconhecível no imenso legado numismático, medalhístico e filatélico à sua guarda.
Esta é uma história também marcada por importantes heranças profissionais, desde logo com a organização da atividade dos moedeiros que, na época medieval, formavam uma corporação organizada em torno de uma confraria e desempenhavam vários ofícios, recebiam rendimento fixo e tinham até vários privilégios, como foro privativo, cadeia própria, direito a porte de armas, isenção de serviço militar e de pagamento de certos impostos e tributos. A primeira organização formal da Casa da Moeda de Lisboa, tanto quanto se sabe, remonta ao regimento de 23 de março de 1498 e assinalou um momento importante de regulação dos processos de trabalho: nesta altura, trabalhavam aqui 104 moedeiros, além de ensaiadores, fundidores, um abridor de cunhos, entre outras profissões.
Ao longo dos seus mais de 600 anos de história, a Casa da Moeda passou por vários locais da capital, acompanhando o seu crescimento, conquistas e vicissitudes, fazendo também parte da história da cidade: da Porta da Cruz, onde terá nascido, junto a Santa Apolónia, avançou depois para localizações mais centrais que atestaram a sua aproximação aos poderes públicos. Antes do terramoto de 1755, situava-se perto do Paço Real, da Casa da Índia e da Rua Nova dos Mercadores, uma das artérias principais de atividade comercial e cambista da cidade, projetando-a como lugar de produção de grande parte do numerário que circulava no reino e no império. Em 12 de setembro de 1720 foi então transferida para a Rua de São Paulo, onde permaneceu até à mudança para o edifício onde atualmente se encontra.
No plano tecnológico, a primeira grande transformação ocorreu a partir de 1677, quando o processo de fabrico manual (através da cunhagem a martelo) foi substituído pela cunhagem por balancé de parafuso, com especial impacto técnico na produção. Um novo regimento de 9 de setembro de 1686 (sob reinado de D. Pedro II), veio ajustar a Casa da Moeda ao novo contexto tecnológico e produtivo, permitindo hoje conhecer a fiscalização de todas as atividades diretamente relacionadas com a produção monetária, a chegada dos metais em bruto (o ouro, a prata ou o cobre) ou a saída das moedas já cunhadas.
Mas a inovação mais relevante para a produção de moeda no século XIX foi marcada pela instalação da primeira máquina a vapor em 1835-1837: um momento chave de modernização industrial, depois prosseguido com a reconstrução dos fornos de fundição, a instalação de novo equipamento a vapor e a aquisição de novas prensas monetárias. O progressivo desenvolvimento técnico agregou ainda uma importante dimensão do conhecimento científico, com a criação do Laboratório de Químico na Casa da Moeda, em 1801, em colaboração com a Universidade de Coimbra, servindo sobretudo o ensaio de metais. Em 1857, este laboratório era ainda reconhecido entre os mais importantes do país.
A fusão com a Repartição do Papel Selado, em 1845, e mais tarde a das Contrastarias, em 1882 (cuja história remonta, pelo menos, ao século XIV, com a primeira regulação da profissão de ourives e do comércio da ourivesaria), vieram acrescentar novas dinâmicas à atividade da Casa da Moeda, através do controlo e regulação da indústria e do comércio do ouro e de outros metais preciosos. A introdução dos selos postais em Portugal, em julho de 1853, associou ainda à sua missão o fabrico de valores postais.
Em toda esta história falamos, portanto, de um património diversificado, com intervenção em diferentes esferas da vida pública e do quotidiano. A produção de moeda, medalhas e selos trouxe consigo a especialização técnica e artística, envolvendo gravadores e escultores, entre outros artistas, na conceção das sua peças (recordem-se, por exemplo, o escultor Simões de Almeida Sobrinho, que propôs o modelo de nova moeda da República ou o grande mestre da medalha cunhada em Portugal, João da Silva). A importância simbólica da moeda foi também crescentemente associada aos grandes momentos e evocações históricas nacionais: tanto quanto se sabe, a primeira moeda comemorativa foi produzida no contexto o IV Centenário da Descoberta da Índia, em 1898, representando o rei D. Carlos I e a rainha D. Amélia, a par da produção de diversas medalhas comemorativas. Já no contexto republicano, a primeira moeda evocativa da revolução de 5 de Outubro foi lançada em 1914. Seriam as primeiras de uma longa linhagem de moedas comemorativas.
Com a implantação da República prosseguiu-se a dinamização da produção medalhística e numismática, numa prática já herdada do final do século XIX, introduzindo-se também alterações funcionais decorrentes da produção da nova moeda da República, o escudo. Foi também sob os ventos da República que em 14 de junho de 1924 se inaugurou o Museu Numismático Português, com a presença de Manuel Teixeira Gomes, tendo como preocupação central a salvaguarda do interesse público da coleção.
Em toda a sua história de «laboração contínua», a Casa da Moeda sofreu uma exceção: em junho de 1929, em plena Ditadura Militar e num contexto de depuração dos serviços públicos, foi encerrada por alguns dias para reorganização de serviços: todo o pessoal, com exceção daquele que trabalhava nas Contrastarias, foi dispensado. Esta «reorganização» permitiu afastar o operariado afeto ao republicanismo e ao socialismo, trazendo para a Casa da Moeda um «ambiente social» mais adequado ao que seria a política centralista e vigilante do novo regime.
Mas foi também em plena afirmação do Estado Novo que ocorreram alguns processos de renovação e modernização merecedores de destaque, como: a elevação do Museu Numismático ao estatuto de Museu Nacional, em 1933; a mudança de instalações da Casa da Moeda da Rua de São Paulo para o Arco do Cego, entre 1938 e 1941, mudança essa que foi precedida por um conjunto de missões de estudo pela Europa, de modo a conhecer os processos fabris mais modernos (como a instalação da oficina destinada a trabalhos de talhe-doce). Já na década de 1950, no contexto de planeamento económico, seguiu-se a aposta na modernização tecnológica para impressão de selos, títulos e notas em talhe-doce. O novo edifício também resultou numa certa abertura à sociedade civil, através de visitas, participação em exposições e outras iniciativas de interesse cultural.
A fusão da Casa da Moeda com a Imprensa Nacional, em 4 de julho de 1972, resultou da coincidência de atividades entre as duas unidades industriais, em particular na parte respeitante à composição e impressão tipográficas, fotomecânica e impressão offset, além da gravura e da fundição. O legado direto da Casa da Moeda incluiu o fabrico de moeda, papel selado e estampilhas fiscais, de selos, vales do correio ou outros valores postais, de títulos da dívida pública, medalhas comemorativas e selagem de valores particulares, cabendo-lhe também a gravura dos selos do Estado, o contraste das ligas de metais nobres e a fiscalização da indústria e do comércio de ourivesaria e relojoaria. No início dos anos 1980, a estratégia de reorganização focou-se sobretudo na criação dos setores de offset e amoedação, seguindo-se, até ao final do século xx a modernização da fotocomposição e da impressão.
Para além do património documental e tecnológico da Casa da Moeda à guarda da INCM, também o Museu Casa da Moeda, que é atualmente um museu acessível a todos em formato digital, tem à sua guarda o património numismático e medalhístico do antigo Museu Numismático Português, num acervo que ascende a mais 36000 moedas e 9600 medalhas (entre aquisições e produção pela própria Casa da Moeda) e que hoje permite contar uma parte muito significativa desta história.